Antes de mais nada, entendo ser necessário situar a origem do dízimo e a sua finalidade, o qual é tratado inicialmente na Torá judaica (os cinco primeiros livros da Bíblia). Mencionado vagamente em Gênesis, na passagem em que o patriarca Abraão oferta o seu dízimo a Melquisedeque, rei-sacerdote de Salém (Gn 14.20), bem como no voto tomado por Jacó (Gn 28.22), será em Levítico, Números e Deuteronômio que o instituto surge como uma contribuição obrigatória para os israelitas dentro do judaísmo. E um dos textos que melhor expressa a ideia de sua institucionalização seria este:
“Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher no campo. E, perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer o SENHOR, teu Deus, todos os dias. Quando o caminho te for comprido demais, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher para ali pôr o seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado, então, vende-os, e leva o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher. Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, ou por ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qualquer coisa que pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR, teu Deus, e te alegrarás, tu e tua casa; porém, não desampararás o levita que está dentro da tua cidade, pois não tem parte nem herança contigo. Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua cidade. Então, virão o levita (pois não tem parte e nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.” (Dt 14.22-29; ARA)
Uma das primeiras observações que precisam ser feitas em relação a esta passagem bíblica é que os dízimos deveriam ser trazidos ao Templo judaico, o qual era considerado como o "lugar" escolhido por Deus para colocar o seu Nome e receber o culto prestado pelos israelitas.
Vivendo numa economia baseada na agropecuária, os israelitas de 3.000 anos atrás deveriam ofertar os bens da terra e as crias do rebanho, quando viessem ao Templo adorar a Deus. E este comparecimento acontecia durante as três festas obrigatórias para aquele povo (Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos). Então, aqueles que moravam em cidades e aldeias mais distantes de Jerusalém, onde se situava o Templo, podiam vender os seus animais e, com o dinheiro, efetuarem o pagamento ou comprarem as ofertas (os animais) quando chegassem ao local.
Embora parte das ofertas pertencesse aos sacerdotes do Templo (ver Números 18), pode-se ler no texto citado acima que também havia uma porção destinada ao ofertante, o qual poderia comer do sacrifício em comunhão com os outros adoradores, numa verdadeira celebração pelas bênçãos recebidas (lembrando a provisão alimentícia de Deus). E, naquelas ocasiões, todos se alegravam juntos. Não só o ofertante e o sacerdote comiam, como o levita e o pobre que, raramente, poderia se dar ao luxo de comer carne em suas refeições diárias.
Por sua vez, eis que, a cada três anos, os dízimos eram destinados ao sustento dos levitas que moravam nas respectivas cidades, bem como aos grupos sociais em risco, os quais o texto menciona como sendo o estrangeiro peregrino, o órfão e a viúva. Assim, as pessoas que se encontravam impossibilitadas de trabalhar (ou que não tinham uma terra para cultivar a exemplo dos levitas) seriam alimentadas através da contribuição compulsória dos dízimos, funcionando como um verdadeiro imposto vinculado à provisão dos necessitados.
Acontece que não é isto que tem sido praticado nas igrejas evangélicas que cobram o dízimo de seus membros!
Pois, além de não terem mais a justificativa de existência física de um lugar central de adoração no planeta (a festejada citação de Malaquias 3.6-11 refere-se a um compartimento do Templo judaico quando fala na "casa do Tesouro"), deve-se observar a ausência (ou a insuficiência) de tais "igrejas" quanto às obras sociais. Principalmente quando encontramos dentre os seus membros pessoas necessitadas e que são devoradas vergonhosamente pelos seus líderes.
Distantes do propósito do dízimo estabelecido na Torá e também das práticas sociais adotadas pela Igreja Primitiva de Jerusalém (ler Atos dos Apóstolos 2.44-46; 4.34-37), esses lobos que se dizem pastores usam as contribuições em benefício próprio e colocam as suas instituições religiosas acima das necessidades das pessoas. E, nestas "igrejas", a construção de novos prédios acaba vindo em primeiro lugar do que a solução dos problemas daqueles irmãos que sofrem com o desemprego, têm problemas de saúde e ou mal conseguem pagar suas contas por causa do alto custo de vida nas cidades brasileiras. Pois, se algum pobre precisar de um tratamento médico, tais líderes são incapazes de mobilizar a comunidade para conseguir recursos, limitando-se quase sempre a fazer orações pedindo cura.
Para agravar mais ainda a situação, o dízimo ainda é apresentado ao povo como um instrumento de barganha com Deus em constantes referências ao verso 10 de Malaquias 3, o qual assim diz:
"Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida". (ARA)
Ora, ao atribuírem o recebimento de bênçãos ao ato do ofertante contribuir com o dízimo, tais pregadores deturpam o propósito principiológico do texto bíblico e adulteram o Evangelho da Graça e a ideia do favor imerecido porque buscam estabelecer como condição o pagamento de um tributo a Deus.
E o que seria entender o dízimo como algo principiológico?
A meu sentir, esta seria a correta visão. Isto porque, sendo o dízimo destinado a promover uma inclusão social, obviamente que passaria a haver mais riquezas sendo distribuídas e circulando na sociedade. E, com a eliminação da miséria pela cobertura das situações de risco, o povo israelita experimentaria uma melhor qualidade baseada na justiça social.
Conclui-se que, atualmente, os dízimos cobrados pelas inúmeras igrejas evangélicas deste país em nada tem a ver com aquilo que a Bíblia prescreveu. Seja pela inexistência do Templo judaico como pela destinação dos recursos arrecadados que não são corretamente direcionados para a satisfação da necessidade dos irmãos carentes. Pois, mesmo quando essas instituições apresentam projetos na área social, fazem isto mais por jogada de marketing do que com o objetivo de melhorar a condição dos membros mais frágeis da congregação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário