terça-feira, 15 de março de 2011

Pastor & Igreja: Uma Relação (conjugal) Em Crise

A mútua desconfiança

Após minha palestra numa conferência para pastores e líderes, um homem de aproximadamente 50 anos pediu para que conversássemos a sós. Seu semblante estava visivelmente caído e seu olhar sem brilho algum. Ele era um pastor que, após doze anos de dedicação à sua comunidade local, havia sido comunicado pela liderança de que estaria dispensado para o próximo ano. A alegação era que ele já não estava correspondendo às expectativas da comunidade e que ela gostaria de respirar “novos ares”. Tomado por um sentimento de baixa auto-estima, envolvido pela desesperança e com o coração amargurado, aquele homem, olhando para o chão, me disse: “Sinto-me usado. Fui totalmente consumido e agora sou descartado”.

Conversas como esta sempre me trazem à lembrança alguns diálogos com amigos que participam da liderança em suas igrejas locais. Entre eles, parece ser crescente o número daqueles que relutam em confiar nas motivações de um pastor. Alguns foram testemunhas da história bem comum do jovem pastor que, diante da comunidade, jura amor eterno, mas diante de uma melhor oportunidade ministerial (ou profissional?), parte com descaso em nome do “senti que esta era a vontade de Deus”. Sentimento ainda pior encontro naqueles que, após se renderem à liderança daquele que demonstrava intimidade com Deus e consciência de sua vontade, descobrem que suas motivações eram obscuras e seu caráter, questionável. Cada um desses líderes locais, em outras palavras, também está dizendo: “Sinto-me usado. Fui totalmente consumido e agora sou descartado...”

Essa situação tem, silenciosa e gradativamente, instalado uma relação de mútua desconfiança entre pastores e igrejas. Para alguns, como sapos imersos na água que vai sendo aquecida, ela nem existe. No entanto, o número de vítimas vai se avolumando, tanto entre pastores como entre igrejas locais. Em nosso meio, cresce tanto o descrédito na figura do pastor — seja por situações de descaso no trato da igreja, seja por escândalos que se tornaram públicos — como o número de seminaristas e jovens pastores que caminham para a sua primeira experiência ministerial diante de uma comunidade cristã pensando em como ali viver sem deixar-se ferir mortalmente. 

Creio que essa relação de mútua desconfiança tem origem numa crise de identidade em que tanto pastores como igrejas se vêem envolvidos na atualidade. Os pastores, cercados por uma sociedade secularizada, que não valoriza sua vocação e seu serviço, são interiormente pressionados a provarem seu valor por meio de cursos acadêmicos, cargos eclesiásticos, estabilidade financeira ou ministérios espetaculares. Por sua vez, as igrejas locais são alvos do assédio de uma pluralidade de metodologias pragmáticas mais preocupadas em fazer clientes ou franqueados do que em contribuir para que, por meio de um pensar teológico e missiológico, a comunidade venha a ser tão-somente aquilo que Deus quer que ela seja.


Afinal, o que somos?

Em meio a esse cenário, boa parte de nossos pastores, principalmente aqueles das igrejas reformadas e pentecostais históricas, estão envolvidos por uma cultura eclesiástica que os transforma em uma espécie de capelão hospitalar. A igreja se vê como um grande hospital e seus membros, conseqüentemente, como pacientes que ali estão para serem visitados, consolados e bajulados. Todos esperam que o pastor, com suas visitas diárias e suas mensagens semanais, amenize as dores geradas pelos problemas da vida e promova consolo e encorajamento. Assim, todo serviço é desempenhado pelo pastor, e seu desempenho é avaliado pelo nível de bem-estar comunitário.

Esse modelo tem conduzido muitos pastores a uma profunda frustração. Embora parte da vocação pastoral encontre seu exercício no consolo dos que sofrem e no acompanhamento daqueles que passam por crises, é um reducionismo antibíblico afirmarmos que isso seja sua totalidade. Além do mais, esse é um modelo que, por um lado, gera no pastor a desumana condição da busca de sua aceitação no grupo por meio do constante e incansável serviço aos seus membros. A relação torna-se condicional e unilateral. Por outro lado, gera na igreja uma dependência doentia de seu “capelão” com sua complacente presença, sua capacidade única de ler e compreender a Palavra, e sua suposta oração com poder diferenciado.

Nesse contexto, o pastor passa a se sentir duplamente pressionado: internamente, pela frustração em estar diante de uma igreja que, à parte de uma visão bíblica acerca de sua natureza, insiste em se enxergar como um grande hospital e exigir dele um trabalho de mera manutenção do bem-estar comunitário; externamente, pelas constantes comparações de seu ministério com as muitas histórias e estatísticas dos “pastores de sucesso” e suas metodologias infalíveis para o crescimento da igreja. Esses dois fatores, o interno e o externo, acabam por levar alguns pastores a se renderem a algum modelo pragmático por meio do qual, de passivos capelães, passam a ser arrojados empresários.

Assim, diferentemente da figura do capelão, aqui o pastor é o homem de visão, que, com carisma pessoal e grande habilidade, articula idéias e mobiliza pessoas em torno de seus sonhos. Estabelecem-se propósitos, elaboram-se estratégias, dividem-se tarefas, fixam-se prazos, tudo segundo o manual e em plena confiança no método. A igreja, gradativamente, torna-se uma pequena (ou grande?) empresa para prestação de serviços religiosos que, diante de seu público consumista, precisa constantemente inovar os programas e ampliar seu portfólio de serviços. Os crentes tornam-se clientes, e tudo é feito visando sua satisfação, incentivando-os a uma cultura utilitarista e uma espiritualidade imatura.

Embora a motivação possa até ser apontada como o desejo de um maior engajamento da igreja na missão de Deus na história, pastores e igrejas que se rendem a esse modelo geram dois tipos de anomalias. A primeira é a do pastor que, como o homem de visão, passa a enxergar sua comunidade local como a matéria-prima de sua própria realização pessoal. O objeto de seu pastoreio já não é a comunidade, mas sua própria visão. A segunda é a da comunidade local que, após construir caras estruturas para o exercício de sua suposta missão, passa a viver exclusivamente para a manutenção delas. Assim, o que era um meio torna-se o fim, e a missão comunitária passa a ser a manutenção das estruturas de poder.

Ambos os modelos, o do capelão e o do empresário, têm gerado doenças na vida do pastor, da igreja e, conseqüentemente, na relação entre os dois. Se no modelo capelão as maiores vítimas são os próprios pastores, no modelo empresário, em geral, são as igrejas. Por isso, o reencontro tanto do pastor com sua vocação bíblica, como da comunidade local com sua vocação histórica são elementos imprescindíveis na restauração desse relacionamento.



Quando lemos Efésios 4.11-13 encontramos:

E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo.

Diante da Palavra, somos levados a concluir que o propósito de Deus para os pastores e aqueles que se encontram diante de comunidades cristãs é capacitar os crentes para o ministério cristão e estimulá-los à maturidade da fé. Em nada isso se parece com qualquer tipo de relação subserviente ou opressora. Pelo contrário, a Palavra estabelece uma relação entre pastor e comunidade caracterizada pela capacitação, pelo crescimento e pela liberdade.

Diante disso, não existe melhor palavra para definir o trabalho pastoral dentro da perspectiva bíblica do que “mentoria”. Mentores não geram dependência por meio da subserviência, nem mesmo intimidam por meio do exercício do poder. Mentores, com o relacionamento e o ensino, tornam-se facilitadores para que aqueles que lhes foram confiados descubram, diante de Deus, a vocação que lhes foi dada e tornem-se homens e mulheres maduros na fé, cada dia mais parecidos com a pessoa de Jesus.



O reencontro com a vocação e a humanidade

Diante de casais em crise, muitas vezes é necessário que primeiramente cada um dos cônjuges se avalie para que depois a restauração do relacionamento seja viável. Creio que o mesmo acontece hoje entre pastores e igrejas. Nossos pastores precisam, em meio a tantas pressões da sociedade em que vivemos, reencontrar a essência de sua vocação pastoral. Da mesma forma, as igrejas locais precisam se libertar das demandas das metodologias e da ditadura do “ser espetacular” para redescobrirem sua natureza singela como comunidade de discípulos em missão no mundo.

Uma vez consolidado o reencontro do pastor com sua vocação bíblica e da igreja local com sua vocação histórica, precisamos dar ainda mais um passo: humanizar essa relação. Por um lado, os pastores precisam ter uma visão mais realista de suas comunidades. Como diz Eugene Peterson, “a igreja é uma comunidade de pecadores, pastoreada pelo maior deles”. Muitas de nossas frustrações, como pastores, decorrem do fato de que esperamos da igreja mais do que o próprio Deus espera dela. A igreja, por sua própria mensagem de graça, atrai para si pessoas tremendamente complicadas e não-resolvidas, assim como eu e você. É a esse grupo complicado que Jesus envia seus pastores quando diz: “Pastoreie meus cordeiros”.

Por outro lado, as comunidades locais também precisam reconhecer que seus pastores são pessoas, com virtudes e limitações. Numa relação humana, não existe como relacionarmo-nos apenas com as virtudes de alguém. A pessoa é uma totalidade e, paradoxalmente, possui certas virtudes porque algumas limitações também estão presentes em sua vida. Assim, em alguns momentos aquelas se sobressairão, enquanto em outros estas virão à tona. Mas, numa comunidade em que existem o compromisso com o amor e a busca pela maturidade, sempre deve existir a possibilidade de se tratar o outro — inclusive o pastor —, em suas limitações, com acolhimento, apoio e encorajamento.

Ricardo Agreste 

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